quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Chega de esperteza! Cansamos de ser otários!
Texto-guia para reflexão sobre o estado da cidadania no Brasil
Jorge Maranhão.


Você ouve em todos os telejornais, lê os jornais e conversa com os amigos e se sente desanimado com tantas notícias ruins sobre o nosso país. Como diz o ditado que notícia ruim corre solta e notícia boa não é notícia ou não interessa a ninguém, fica parecendo que a grande maioria dos brasileiros, são desonestos e malandros, não gostam de trabalhar e querem sempre levar vantagem em tudo. Mais isso não é verdade! A grande maioria dos brasileiros é gente trabalhadora, cumpridora de seus deveres e honesta. Até por que não é lógica a hipótese de haver mais espertos do que otários, se não, não poderia haver um número de otários suficiente para tantos espertos. Na verdade, otários são os que pensam que são espertos. Pois o mais esperto é aquele que se finge de otário e aguarda a hora em que o esperto acaba vítima de sua própria esperteza! Como diz o ditado que malandro demais se atrapalha, o mentiroso tem que ter excelente memória, se não acaba vítima de sua própria mentira. Na verdade, o que temos no Brasil é aqueles que se acham muito espertos que são a minoria, e aqueles que começam a não querer mais ser tratados como otários que são a maioria. Por isso o Brasil é aparentemente tão pacífico, apesar de ser tão injusto! É que a grande maioria não aprova o recurso à violência social nem à violação legal. Mais se você quer mesmo fazer algo para melhorar nosso país, além de ficar reclamando dele, a primeira coisa a fazer é participar da vida social, fazer a sua parte, por que um país nada mais é do que um grande coletivo de indivíduos. Ser cidadão na verdade é participar e fazer parte da vida coletiva do Brasil, entendendo o que são os direitos e deveres fundamentais, individuais e coletivos dos cidadãos prescritos no Art. 5º. Para tanto é fundamental entender o que significa cidadania e o estado nacional, criado exatamente para nos garantir direitos fundamentais e nos cobrar deveres. A discussão sobre a missão do Estado, suas atribuições e limites talvez seja a mais antiga discussão da filosofia política, desde que os homens resolveram viver em sociedade. E todos nós concordamos que não cabe apenas aos governantes e ao Estado a responsabilidade em diminuir as injustiças sociais, a pobreza e a proteger os menos favorecidos. Todos nós de alguma forma participamos de alguma organização civil que também luta pela solidariedade. Particularmente no Brasil, temos uma longa tradição de iniciativas de mútua-ajuda social, a começar pelas próprias igrejas, além de orfanatos, asilos, cooperativas, entidades educacionais, de saúde e associações civis dos mais variados fins e propósitos. Mas a questão é saber se esta é a melhor forma de participação do cidadão diante das obrigações do próprio Estado. Ao par de compreendermos a função do Estado, também temos de compreender a função da própria cidadania. E aqui é que começa o problema! Muita gente bem intencionada começou a exigir e prometer que bastava ao Estado cumprir suas funções sociais de redistribuição dos impostos arrecadados dos mais favorecidos para os menos favorecidos. Sem se perguntar como exatamente poderíamos garantir que esta ação fosse cumprida. Assim é que, a custa de impostos cada vez maiores, o Estado brasileiro passou a ter 65% do seu orçamento de investimento e custeio aplicado nos setores sociais para cumprir a promessa de universalizar a previdência e a assistência social, a saúde, o ensino fundamental, médio e superior, a habitação e o saneamento, deixando apenas 35% para os setores estratégicos da justiça, da segurança, da defesa e da infraestrutura de energia e transportes. O resultado foi que a emenda acabou pior do que o soneto e ao invés de se garantir direitos sociais efetivamente para todos, acabamos produzindo um Estado perdulário, cada vez mais endividado e sem crescimento econômico expressivo. Um Estado cativo de financiadores de sua dívida astronômica e não de produtores, empreendedores e trabalhadores.
Mesmo no âmbito da sociedade civil vamos ver que a grande maioria de iniciativas das organizações não-governamentais são no campo da ação social da educação, saúde, assistência social, geração de renda e meio ambiente, concorrendo com a própria ação do Estado e deixando de lado a ação estratégica de controle social sobre os governos, os orçamentos, os mandatos, o funcionamento da justiça e a promoção dos direitos da cidadania que só a sociedade civil pode exercer. Sem controle dos cidadãos, o que vemos foi o aumento da ineficiência do Estado, da corrupção e da perversa inversão de sua missão inicial de ente de redistribuição de renda para instrumento de concentração de renda, via as altas taxas de juros pagas para refinanciamento da dívida pública. Quando sabemos hoje que os chamados direitos sociais dos cidadãos só são necessariamente garantidos depois de garantidos os direitos econômicos que, por sua vez, só são de fato garantidos depois de garantidos os direitos civis e políticos. Ou seja, a cidadania é um conceito mais de responsabilidade política e civil de todos os atores sociais do que de responsabilidade social de empresas e responsabilidade fiscal de governos. Só o bom funcionamento da justiça e da segurança do Estado para os cidadãos titulares de plenos direitos civis é que pode garantir a qualidade da boa representação dos direitos políticos que, por sua vez, poderão garantir uma justa ordem econômica e tributária que, por sua vez, poderão garantir todos os demais direitos sociais. Qualquer promessa diferente dessa é demagogia e não democracia! No entanto, são as instituições políticas e judiciárias justamente as que menos têm merecido crédito por parte da opinião pública brasileira. Como se não pudéssemos mudá-las, fossem intocáveis e não tivéssemos nada a ver com este desígnio dos deuses. Que os menos favorecidos vejam nos políticos os propiciadores da salvação e a justiça de Deus como substituta da falha justiça dos homens, tudo bem. Mas se os mais favorecidos pensam dessa maneira, das duas uma: ou são ingênuos e ignorantes ou simplesmente grandes espertalhões se aproveitando da maioria de omissos. Quando todos sabemos que o Estado só será social e economicamente forte se for jurídica e politicamente bem organizado, soberano e digno de seus cidadãos. Com a mesma qualidade de quadros na sua representação política e jurídica quanto a própria sociedade civil tem na sua representação científica, artística, empresarial e profissional. Todo o cidadão eleitor e contribuinte tem o dever de participar da construção desse Estado justo, tem o dever de exercer o controle social sobre os orçamentos públicos e os mandatos políticos. Antes de ser socialmente responsável, tem de ser civil e politicamente responsável. Pois a verdadeira inclusão social de um povo só começa com a inclusão política de suas elites. A superação de nossa crise social não é econômica ou fiscal, mas sim a superação de nossa miséria cultural, a superação do impasse entre a crise de valores do setor privado e a crise gerencial do setor público. Pois mesmo a cobrança de responsabilidade fiscal de governos em contraponto à cobrança de responsabilidade social de empresas é mais um falso dilema da irresponsabilidade política de todos nós e sobretudo dos mais favorecidos. Se num primeiro momento, cidadania pode parecer satisfação de direitos sociais, assistencialismo, solidariedade revestida de filantropia e moral religiosa, entre elites e excluídos, isso é pouco e tem se demonstrado históricamente insuficiente para nos resgatar de progresso, ordem e justiça.
Se num segundo momento, cidadania pode parecer expressão de direitos civis, ética profissional, boa conduta social, civilidade, urbanidade entre iguais, isso é pouco também. O fato é que chegou o momento histórico de encararmos a cidadania como iniciativa coletiva da sociedade, como expressão de direitos políticos, controle social de mandatos, governos e orçamentos, fiscalização da justiça e da segurança, entre cidadãos autônomos e governantes de boa fé.

Ou seja, temos de mudar o paradigma de nossa miséria cultural que, antes de ser econômica e social, é verdadeiramente jurídica e política, pelo paradigma da cultura de cidadania, usando para isso e intensivamente uma das áreas de maior excelência de nossa expressão cultural que é a artística e de entretenimento, tanto nos espaços públicos das cidades quanto nos espaços da opinião pública da mídia. Se temos deficiências em nosso sistema educacional, que é o sistema próprio para a reprodução de conhecimento, podemos supri-las com o nosso natural talento cultural para o entretenimento na mídia, enquanto sistema de reprodução de valores.

Precisamos apenas nos dispor a uma ação menos individualista e mais coletiva. Como na célebre argumentação do técnico Felipão explicando por que não convocava Romário para a seleção do penta: o excepcional talento individual dele pode não agregar estímulo e somar esforço aos ótimos talentos do conjunto da equipe. É o sinal de que muitas vezes o ideal é inimigo do possível. Nossa dependência de Dom Sebastião, do salvador da pátria, do herói messiânico, nos priva a todos de pequenas iniciativas coletivas do dia a dia. Nossa baixa auto-estima nos leva a achar que a pequena iniciativa de muitos não vale o golpe de mestre ou a grande tacada de um ferra-brás.

Mesmo nos símbolos nacionais soam ambíguos determinados valores a nós destinados. Resta mal contada a história da exclusão do amor ou da justiça do lema nacional da ordem e do progresso. Como a condenação à orfandade ou à omissão da figura do pai, cuja função é justamente a de nos forjar a consciência de direitos e deveres, se torna patente no emblemático hino-destino brasileiro!

Mesmo um nobel de economia, como o americano Douglas North, já nos disse que os países que mais prosperam são justamente aqueles que têm instituições políticas sólidas, uma administração pública estável e uma justiça rápida, eficiente e de regras claras. E o Estado brasileiro não é injusto apenas para com os cidadãos socialmente excluídos e pequenos pagadores de impostos, mas também é injusto para com os cidadãos mais favorecidos e grandes pagadores de impostos. Porque pagam para ter segurança e não têm, a menos que contratem segurança privada. Pagam para ter educação para seus filhos e não têm, a menos que contratem educação privada. Pagam para ter garantia de saúde e previdência e não têm, a menos que contratem saúde e previdência privadas. No entanto, diante do noticiário escandaloso de corrupção e desperdício de dinheiro público, todos continuamos pagando impostos, nos omitindo politicamente dos governos e financiando a incompetência. E o que fizeram outras nações que, partindo do mesmo estágio de desenvolvimento que a nossa na era colonial, como os Estados Unidos, são hoje uma potência? Ou mesmo países como China, Chile, Rússia e Índia que no século passado eram menos desenvolvidos que o Brasil e hoje já nos superam? Só para ficar nos Estados Unidos, cujas mercadorias gostamos tanto de importar, mas que os bens simbólicos da cidadania não damos a menor relevância, a diferença se deu exatamente no campo da cultura das elites governantes. Um país que inscreve no frontispício da Suprema Corte que a boa administração da justiça é o pilar mais firme de um bom governo, tinha uma exata noção de que “o crime não compensa”, como foi a grande investimento de mídia feito justamente na crise dos anos vinte por uma força-tarefa de alguns governantes, empresários e profissionais de mídia e de produção da cultura norte-americana. A própria noção de crime, no imaginário popular do Brasil, se limita ao crime contra a pessoa e a propriedade privada e não contra o coletivo ou o patrimônio público. Enquanto os chamados delitos privados forem “incentivados” no dia-a-dia pela omissão política das elites e os grandes crimes públicos espetacularizados na mídia, teremos pouca consciência de cidadania. É urgente acrescentarmos ao disque-denúncia o clique-cidadão! Assumindo mesmo antes dos preceitos dos direitos sociais (art. 6º), os direitos civis e políticos (art. 5º) que, não por acaso, são priorizados no próprio texto constitucional. Assim temos de assumir o mais importante preceito civil de uma plena cidadania: “o fato de não termos o direito de meter o bedelho na vida privada do próximo não significa que não tenhamos o dever de constrangê-lo quando este abusa de seu direito privado em detrimento dos direitos civis coletivos e do bem comum.” Assim como o preceito político: “sobretudo se abrimos mão do direito e dispensamos os serviços públicos da educação, saúde, previdência e segurança, não significa que não temos o dever de participar do controle da administração pública, dos mandatos e dos orçamentos, como única forma de não compactuar com ilegalidades, de promover a paz que interessa a todos e legarmos um país menos impune, injusto e violento para nossos filhos.” E para detalhar estes preceitos indicamos três ferramentas: os dez mandamentos do cidadão consciente, os dez compromissos do cidadão atuante e o contrato do mandato-cidadão para a defesa do eleitor. Quando você começar a assumir uma conduta exemplar de cidadania, que não se limita à sua particular boa conduta de cumprir com os seus deveres, mas sobretudo a de docemente constranger o outro a agir da mesma forma, com total respeito aos direitos civis coletivos e às leis, você vai perceber que está na verdade mudando o país, transformando toda uma cultura política, rompendo com velhos paradigmas de valores de nossa herança histórica, e participando enfim de uma grande maioria de brasileiros que de otários na verdade não têm nada!

Mestre em filosofia pela UFRJ, publicitário, consultor, editor do site e dos boletins do da Voz do Cidadão na rede CBN. jorge@professa.com.br

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